Por Washington Novaes
Há muito se sabe e se diz que no Brasil há “leis que pegam” e “leis que não pegam” ou “ficam só no papel”. É verdade. Os exemplos poderiam ser dezenas, centenas, mas não é preciso enumerá-los, cada pessoa tem em sua memória muitos exemplos. Mas talvez o exemplo mais aberrante seja o da Resolução nº 1, de 23 de janeiro de 1987, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que tem força de lei.
Diz ela, no inciso I do artigo 5º, que projetos que precisem de licenciamento ambiental deverão “contemplar todas as alternativas tecnológicas e de localização do projeto, confrontando-as com a hipótese de não execução do projeto”. E entre as iniciativas que a essa exigência devem submeter-se estão as “barragens para quaisquer fins”, assim como “abertura de canais” e implantação de “hidrelétricas acima de 10 MW”.
A Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, que acaba de receber do Ibama licença prévia, enquadra-se em todos esses itens. Terá sido confrontada com alternativa de não execução? Não parece. Poderia ser confrontada, por exemplo, com o estudo de Unicamp e WWF, tantas vezes já mencionado neste espaço, que afirma não precisar o Brasil de ampliação de sua oferta de energia; poderia ganhar o equivalente a 30% de seu consumo atual com programas de conservação e eficiência energética (como ocorreu no apagão de 2001); ganhar mais 10% com a redução de perdas nas linhas de transmissão (o Brasil perde mais de 15% nesse caminho, ante 1% no Japão); e ainda outros 10% com a repotenciação de geradores muitos antigos – tudo a custos muitas vezes menores que os da nova geração. Mas não só os governantes deixam a lei no papel como o atual ministro de Minas e Energia atribui “intenções demoníacas” a quem recorde esse e outros questionamentos de alto nível na área científica e universitária. E ainda tem a desfaçatez de dizer que só estão sendo licenciadas numerosas usinas termoelétricas, altamente poluidoras, porque o licenciamento ambiental impede a implantação de hidrelétricas (no momento em que não há ameaça de falta de energia e os reservatórios transbordam).
O fato é que se concedeu licença prévia para o projeto de Belo Monte, mas “com 40 condicionantes”, que incluem “ações de mitigação dos impactos do empreendimento”. Isso incluiria projetos de saneamento, “melhoria das condições de vida da população impactada” (12 mil pessoas, segundo o governo, 80 mil, segundo várias ONGs), monitoramento da floresta e adoção de áreas de conservação. Ao todo, isso poderia chegar a R$ 1,5 bilhão, mais 0,5% do valor do empreendimento a título de “compensação ambiental”.
A Resolução nº 1 do Conama já “não pegou”. As condicionantes vão “pegar”? A julgar pela experiência, tudo indica que não. Pode-se voltar ao caso do projeto de transposição das águas do Rio São Francisco, tantas vezes comentado aqui. E na última (30/10/2009) para lembrar exatamente isto: que 31 condicionantes exigidas pelo Ibama ao conceder licença prévia (como agora em Belo Monte) não haviam sido cumpridas e ainda assim as obras tiveram licença de instalação e foram iniciadas. E não eram exigências simples: referiam-se à impropriedade para a agricultura da maior parte dos solos aos quais se destinaria à água; diziam que toda a água iria para açudes onde as perdas por evaporação podem chegar a 75%; afirmavam que quase todo o restante se destinaria ao abastecimento de cidades onde as perdas de água canalizada estão na casa dos 40%; que a transposição não beneficiaria as populações mais carentes, que vivem em pequenas comunidades isoladas.
De nada adiantou todos esses argumentos terem o aval de nomes ilustres da ciência, da SBPC, da OAB, de prelados religiosos. A todos o governo federal respondeu que se tratava de argumentos de “má-fé” ou desconhecedores da realidade. E quando o Comitê de Gestão da Bacia do São Francisco – o maior interessado -, por 44 votos a 2, condenou a transposição, a então ministra do Meio Ambiente levou-a ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos, onde o governo federal tem maioria absoluta e, sozinho, aprovou a obra, também questionada pelo Tribunal de Contas da União, que aponta “sobrepreço” de R$ 460 milhões.
Agora, a licença de instalação para Belo Monte está concedida, embora nem sequer se saiba quanto custará: R$ 16 bilhões, R$ 30 bilhões? Seja como for, a potência nominal de 11,2 mil MW se transformará em “energia firme” de apenas 4,5 mil MW, porque nos períodos de estiagem poderá cair para até mil MW. E exigirá a abertura de dois canais no rio, com a escavação de 160 milhões de metros cúbicos de terra e 60 milhões de metros cúbicos de rochas. Que impactos terão no rio obras como essas, em volume superior às que abriram o Canal do Panamá? Um painel de 38 especialistas na área acha que o estudo de impacto subestimou também o deslocamento obrigatório de moradores da região; que não incluiu o custo das infraestruturas urbanas necessárias para alojar essas pessoas e as dezenas de milhares que acorrerão em busca de empregos; o impacto sobre a pesca (da qual dependem 72% dos moradores da área); a não-inclusão dos custos sociais e ambientais no preço da obra e no preço da energia a ser gerada; a concessão de incentivos fiscais do Estado e municípios, em detrimento de obras sociais; a destinação de praticamente toda a energia aos setores de eletrointensivos (alumínio e ferra gusa, principalmente), a preços subsidiados, como em Tucuruí, e que precisam ser pagos por toda a sociedade consumidora; os prejuízos para vários grupos indígenas.
Ao lado disso tudo, ainda restam as questões referentes aos incentivos à ocupação desordenada da Amazônia e seus reflexos na temperatura e no clima, no momento em que a ONU coloca o Brasil em sexto lugar entre os países mais afetados por “desastres naturais”.
Como dizem os tribunais, “é o relatório”. Vamos esperar o veredicto social.
Washington Novaes é jornalista. E-mail: wlrnovaes@uol.com.br
Fonte: Jornal “O Estado de São Paulo”
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010
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